Não é fado normal
Por Hugo Milhanas Machado
Publicado en nº 1 (Primavera 2015)

Vinha no balanço dos poetas lá da terra e quando a canção começa a crescer alguns de nós batem palmas, outros procuram o rosto de um amigo não muito longe, queremos perceber o chegar da música e como bate e como começa a ficar a música em cada um de nós, por isso mexemos e olhamos depressa, temos aquela sensação do amigo que passa perto e não acaba de chegar, mas vai chegando, e depois tudo se começa a baralhar e confunde, começam essas terras a mostrar onde a gente não está e onde se calhar nem sequer quer estar, lugares ao fim e ao cabo bonitos, ou lugares de que a gente pode gostar, lugares fora de lugares, lugares bons, e a intuição mete-se gorda connosco e começamos a dizer ou a pensar que aquilo não é normal, ou primeiro pensamos muito fundo cada um de nós e depois dizemos como segredo, muito baixinho, nos pés da fala ou da falinha como aquele amigo disse, que isto não é normal, que não devia ser assim, que a guitarra vai por um sítio maluco, que faz até um estremecimento no corpo tipo navio, como se a gente andasse embarcada mas só de noite, nas horas do dormir e do esquecer, ainda que às vezes só desejemos dormir tão depressa quanto possível, por gumes uma viagem, e voltar a um dia parecido no dia seguinte, com coisas próximas e vizinhas, a música às vezes também faz isso mas por mais tempo, durando-nos muito mais tempo, ao ponto de acreditarmos ser possível retomar o passado todo ele num achado momentâneo de entusiasmos, quando crescem em nós emoções até então de pedra e compreendemos que algo em nós tinha começado a mudar, mas quando?, quando começou isto a ser diferente?, e depois sossegamos e voltamos a pôr as coisas nos sítios e revemos as coisas assim paradas, notamos certo cansaço e sentamos ao lado das coisas, e então aqueles traços rijos do passado voltam a desaparecer, quase sempre de forma violenta e imperceptível, e ainda corremos para os alcançar, fechamos os olhos ou erguemos o rosto e por momentos julgamos poder recolher uma ou outra imagem, mas não, acabamos por esmorecer e alguma coisa nos distrai e queremos sair à rua ou apreciar uma comida abundante, passar um disco que há muito não escutamos ou fazer as tarefas lá de casa, e tudo isto porque a música fez um gesto diferente ou nós ouvimos diferente, como nunca, como jamais nos fora possível, até porque esta é sempre a primeira e única e irreparável vez de todas coisas, e a música chega de um lugar sem nome mas à espera de nome, e a música fica, a música vai ficando em todas as casas e todas as músicas, e batemos palmas, poucas, só para começar, queremos ouvir por dentro do som e tocar onde só a cor nos permite por momentos poucos momentos morar, subir um bocado da montanha e montar ali a casa, a casa que é para sempre, a casa que vamos fazendo um pouco por todo o lado, e morar ali em silêncio, ficar sempre no silêncio dessa música tão estranha que não se cala nunca, a música também é uma casa, pensamos, portuguesa poesia, o teu corpo também é casa, e quando juntamos mãos e braços também estamos a crescer casas, e gostamos de pensar nisto, acreditamos, já podemos sorrir uns com os outros, tocar ombros, avançar por onde queríamos ir e que depois estragou caminho, fazer força para que a malta esteja bem, querer envelhecer perto e cada vez mais perto mas não ficarmos só nós, certo calor de sermos nós a passar uns pelos outros, dizer aquelas coisas que temos guardadas para dizer, falar forte, falar da gente, e chega o momento em que já lá estamos, temos coisas à volta, ou não temos nada mas estamos, e começamos a ligar um pouco menos à música, já andamos um pouco mais dentro da música, perguntamos, reconhecemos, pedimos perdão, temos tudo pela frente, olhamos aquele sítio de longe e só então percebemos que é um fado normal.